Doenças autoimunes são doenças que atacam o sistema imunológico contra uma estrutura do próprio organismo, ou seja, uma resposta autoimune. Todo mundo aprende na escola que o sistema imunológico existe para combater ameaças externas, como vírus e bactérias. Ao “visualizar” esses agentes, produz anticorpos com o objetivo de atacá-los. Em alguns casos, no entanto, o general desse exército confunde células do próprio organismo com invasores.
Os mecanismos imunológicos que ocasionam a lesão dos órgãos nessas doenças é algo que médicos e cientistas até compreendem bem. Já o que leva o sistema imunológico a se reverter, destruindo algo que teoricamente deveria ser protegido, ainda é um mistério, ou “a pergunta que vale um bilhão de dólares”, como diz o médico Freddy Eliaschewitz, consultor da ADJ Diabetes Brasil.
De acordo com o Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos EUA, mais de uma centena de doenças crônicas têm origem em uma resposta autoimune. Mas, apesar do processo em comum, cada doença autoimune tem suas próprias características, ritmo evolutivo e sintomas específicos. É por isso que não existe um médico especialista em “autoimunidade”.
“Hoje sabe-se que existe até infertilidade causada por doença autoimune, ou seja, é algo que permeia toda a medicina”, explica o reumatologista Luís Eduardo Coelho Andrade, professor da Universidade Federal de São Paulo. Mas, endocrinologistas, dermatologistas e diversos outros especialistas podem ser requisitados, bem como outros profissionais de saúde, como nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas.
Embora existam diversas teorias para explicar a autoimunidade, é importante frisar que nenhuma delas foi confirmada até hoje, segundo os especialistas. A “teoria da higiene” é uma delas – como as doenças são mais comuns em países mais desenvolvidos e em áreas urbanas, cogita-se que o consumo de alimentos pasteurizados e o excesso de higiene estariam impedindo o sistema imunológico dessas populações de se “educar” corretamente.
Outra teoria é a do mimetismo molecular – alguns micro-organismos teriam aumentado suas chances de sobrevivência com a capacidade de se camuflar dentro do organismo. Essa semelhança faria o sistema imunológico se confundir e passar a combater uma estrutura própria depois de uma virose, por exemplo. Há, ainda, a ideia de que certas infecções levariam o organismo a expor componentes que antes ficavam escondidos e, portanto, não são reconhecidos pelo sistema imunológico.
DADOS DOENÇAS AUTOIMUNES
Estima-se que as doenças autoimunes afetem de 5 a 8% da população geral. Considerando cada doença autoimune especificamente, a frequência é bem menor, variando de 0,01 a 1%, mas há estimativas menos otimistas. Os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, por exemplo, afirmam que 23,5 milhões de norte-americanos sofrem dessas enfermidades, o que não é pouco para uma população de cerca de 320 milhões. Já a American Autoimmune Related Diseases Association (AARDA), uma entidade sem fins lucrativos, diz que 50 milhões é um número mais realista, pois os Institutos só consideram 24 doenças para as quais há pesquisas epidemiológicas de qualidade. Só para se ter uma ideia do que essa estimativa representa: as doenças cardíacas afetam cerca de 22 milhões de norte-americanos e o câncer, 9 milhões. É preciso haver uma tendência genética para desenvolver essas doenças. Segundo os especialistas, existem variantes genéticas conhecidas que predispõem parte da população às doenças autoimunes. Ou seja, algumas pessoas nunca vão desenvolver o problema, enquanto algumas famílias podem ter diversos membros com diferentes tipos de doenças autoimunes. Mas ter a tendência não significa ter a enfermidade – é preciso que haja um fator ambiental que deflagre a doença.
Aproximadamente 75% das pessoas que sofrem de doenças autoimunes são mulheres. A justificativa mais aceitável para essa desigualdade é o fator hormonal: “O estrógeno é um estimulante da imunidade”, explica o reumatologista da Unifesp. Tanto que boa parte das doenças autoimunes acomete mulheres em idade fértil.
QUAIS OS PRINCIPAIS SINTOMAS?
Embora toda doença autoimune seja crônica, algumas pessoas apresentam sintomas mais leves, enquanto outras têm manifestações tão intensas que, em certos casos, podem levar à morte. Um dos exemplos é o lúpus: enquanto alguns pacientes apresentam eventuais dores nas articulações e a famosa mancha no rosto, em forma de borboleta, outros desenvolvem problemas sérios nos rins ou nos vasos sanguíneos (vasculite).
COMO FUNCIONA O TRATAMENTO?
O tratamento para doenças autoimunes evoluiu bastante nos últimos anos e varia de acordo com a enfermidade, mas o uso de corticoides é algo frequente. Esses anti-inflamatórios são eficazes e ajudam a controlar a reação do organismo, mas seu uso crônico traz efeitos indesejados, como aumento da vulnerabilidade a infecções e ganho de peso.
“Hoje há novos remédios que permitem um uso menor de corticoide”, informa Andrade. E alguns medicamentos biológicos, derivados da biotecnologia, têm sido bastante eficazes no caso de certas doenças, como artrite reumatoide, psoríase e doença de Crohn, embora o custo ainda seja muito alto.
O reumatologista da Unifesp conta que ele próprio, em sua experiência pessoal, presenciou um avanço notável nos últimos anos. “Antigamente, os ambulatórios para artrite reumatoide eram lotados de cadeiras de rodas, e hoje você encontra uma ou outra”, relata. “E se antes dar o diagnóstico de lúpus a uma garota de 20 anos era uma sentença, hoje você pode dizer à paciente que ela terá uma vida normal, só terá que ser mais disciplinada com exames, consultas e medicamentos.”
Existem pesquisas experimentais com terapias que, de alguma forma, ajudariam a “resetar” o sistema imunológico. É o caso, por exemplo, do uso de células-tronco na tentativa de combater o diabetes tipo 1. Mas ainda há muitos obstáculos a serem enfrentados. Freddy Eliaschewitz comenta que muitos pacientes entram em remissão, mas depois a doença volta a se manifestar. E um procedimento desse tipo sempre envolve riscos, pois são necessárias altas doses de imunossupressores.
Quando se fala em doença autoimune, um dos exames mais lembrados é o FAN (Fator Antinúcleo). Ele é realizado para detectar autoanticorpos (são anticorpos dirigidos para células e tecidos do próprio corpo) contra estruturas nucleares das células e costuma ser solicitado quando há suspeita de reações autoimunes, por exemplo, a presença de dores articulares sem lesões ou desgaste aparentes. Há vários padrões analisados, e, cada um deles, quando o resultado é positivo, pode ser sugestivo de uma ou outra doença autoimune.
Luís Eduardo Andrade explica que o FAN foi muito importante quando se iniciaram os diagnósticos de autoimunidade, a partir da metade do século passado. Mas, depois, os cientistas descobriram que muitos indivíduos saudáveis, ou com certas infecções, também podem apresentar o exame positivo. Portanto, o FAN pode ajudar a estabelecer um diagnóstico que tenha surgido a partir de sintomas, mas, sozinho, não significa nada.
Em geral, diante da suspeita de doença autoimune, o médico solicita também outros exames de sangue para identificar anticorpos específicos.
Existe relação entre estresse e doença autoimune?
Muitos pacientes contam que tiveram uma doença autoimune deflagrada depois de sofrer algum evento traumático. De acordo com o reumatologista da Unifesp, essa relação com o emocional é observada em alguns indivíduos, mas é difícil medir esse tipo de impacto de forma consistente.
Mas o médico avisa que o estresse pode influenciar, sim, o estado da doença. Por isso é importante que os pacientes diagnosticados busquem ter uma vida equilibrada, com atividade física, nutrição adequada e sono suficiente. “Há conexões importantes entre o sistema nervoso e o sistema imunológico”, justifica.